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sábado, 22 de maio de 2010

O Não-lugar de Clarice

Clarice não está. Bati na sua porta muitas vezes e sempre ecoava do outro lado a mesma resposta: Clarice não está. Fiquei preocupado com esta ausência. Queria entregar-lhe em mãos uns desencontros, uns textos que ao longo da vida havia escrito. Queria entregar-lhe algumas outras coisas: algumas lembranças, algumas gotas de orvalho estancadas na pedra, uma lágrima cristalizada por cima de uma notícia triste do jornal, alguns desejos, despejos e outros arrependimentos. Queria, quem sabe, entregar-lhe outras palavras que talvez nem mesmo existissem. Fossem só ficção. A palavra ficção é uma ficção? E a palavra amor? Como é que se escreve? A procurei desde cedo por isso.
Mas, sempre voltava de sua porta com a mesma resposta. Sempre, sempre, sempre. Como um eco surdo ou como uma voz diáfana por onde a claridade de sua voz, voz clariceana, deixava entrever palavras-luz, palavras-setas que perfuravam imagens, pensamentos e quebravam conceitos.
Foi então que comecei a perceber o não-lugar de Clarice. Ali aonde ela não estava deveria sua palavra advir. O não-lugar de Clarice era a palavra. Clandestina palavra. Descobria assim, a cada vez e aos poucos, que não adiantava procurá-la lá aonde eu pensava encontrá-la. Pois este outro lugar era sempre o lugar da invenção. E, nesta época, eu ainda era muito jovem para perceber isto que a cada dia descobria sobre ela. Ainda não tinha dezoito, mas ela já habitava em seu não-lugar. E eu a amava justamente por isso. Eu é que por muito tempo ainda insisti em querer dar um lugar para ela. Para ela em mim. Minha atopia.
Com o passar dos anos fui descobrindo que me era inútil querer encontrá-la, mas sempre que o desejo tornava-se insaciável - e isto era muito frequente -, corria para minha estante e fazia com que ela me achasse. Pois a cada vez e sempre e com maior força e intensidade, eu estava lá dentro daquelas páginas. Cada vez que eu me perdia em labirintos de mim eu quase me dava ao luxo de me reencontrar, atônito, entre Gê Agás, Lóris, Ulisses, Macabéias, Joanas.
Como era possível um não-lugar? Como era possível uma "terceira margem" clariceana? Até hoje ela me deixa num grande desassossego d'alma com este não-lugar. Até hoje não encontro respostas para ela. Então, como que querendo me consolar e atribuir quase que ao acaso (se houvesse) a resposta para todas as perguntas, abro uma página e leio: "a repetição de um enigma é a repetição do enigma. O que És e a resposta é: ÉS. O que existes? e a resposta é: o que existes. Eu tinha a capacidade da pergunta, mas não tinha a de ouvir a resposta."
Talvez tenha sido por isso. Já faz tanto tempo que nem lembro como tudo começou. Talvez muito amiúde e, com todo cuidado, é que afirmo com a emoção aos soluços este intraduzível desejo de ouvir. Escutar estes não-lugares. Quem sabe?

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